Por Saulinho Farias
Capítulo do meu livro "Preciso de Força"
“...consoleis os de pouco ânimo, sustenteis os fracos e sejais pacientes para com todos”. I Ts 5.14b
Em 2009, Vítor Vicente, um estudante recém aprovado no vestibular da Universidade Federal Rural do Rio de Janeiro acabara de ingressar no curso de Física. A alegria dos pais com a aprovação do filho na renomada universidade foi repentinamente interrompida logo na primeira semana de aula: o jovem de 22 anos foi violentamente constrangido pelos veteranos do seu curso a mergulhar em uma piscina para atletas de saltos ornamentais com profundidade de 9 metros, mesmo sem saber nadar. Tratava-se de um trote universitário, prática na qual alunos universitários veteranos obrigam os recém chegados, denominados por eles de “bixos”, a vivenciarem situações variadas de humilhação e constrangimento para “merecerem” estar ali. O Vítor morreu afogado.
Existem relatos de trotes humilhantes onde os veteranos obrigam os recém chegados a comerem suas fezes ou beberem urina; outros são expostos a humilhação com conotação sexual; em 2009 um grupo de novos estudantes do interior de São Paulo se queixou que foram obrigados a rolar em uma lona com corpos de animais mortos e fezes em decomposição. Os novatos calouros são vistos pelos veteranos como animais a serem domesticados por meio dessas práticas vexatórias. Eles devem “aprender a trotar”, pois futuramente são eles que vão se impor. Os alunos que não participam desses trotes são excluídos dos demais, considerados fracotes e “bixos eternos”, são condenados pelos outros a prática constante do bullying, ou seja, sofrem humilhações durante todo o decorrer do curso. Não são poucos os casos de jovens submetidos a tratamento psicológico após trotes estudantis.
É de impressionar que um grupo de pessoas tão distinto como os universitários, onde o conhecimento é tão valorizado, venham a denegrir a dignidade do próximo com tanta crueldade. É mais uma prova de que o conhecimento humano à parte de Deus não transforma o caráter humano nem resolve os conflitos nos relacionamentos. Pelo contrário: impera uma mentalidade egoísta e darwiniana de “seleção natural” onde os mais fortes sobrevivem. “Se você for um fraco (ou feio, ou pobre, ou negro) não tem espaço no meu grupo”.
Esse tipo de mentalidade tão comum no mundo não deve ter lugar na família de Deus. Mas infelizmente nem sempre é assim que acontece. O que se percebe é que naquilo que deveríamos ser um exemplo, pelo fato de levarmos o nome de Deus conosco, temos sido reprovados. “Não é de admirar que o mundo fala mal de Deus por culpa de vocês” (Rm 2.24), pois prática não tem se elevado ao nível do discurso. Será que temos dado espaço para os fracos? Temos acolhido as pessoas tristes e desanimadas? Temos recebido os pobres? O mundo escolhe os fortes, dá preferência àqueles que possuem uma boa aparência, aos que são inteligentes e sabem se expressar bem, aos que estão sempre entusiasmados, àqueles que tem o perfil de líderes ou àquelas pessoas vivem em função da expectativa dos outros. Mas isso é – no mundo. Não na Igreja do Senhor. Na família de Deus deve-se excluir do vocabulário a palavra exclusão.
O “trote espiritual” não é uma prática tão visível como o trote estudantil. Trata-se de uma exclusão dissimulada, praticada por alguns que se consideram “veteranos na fé”, ou “espirituais”. Em seu interior se acham fortes, maduros, sábios. Acham que sua história de vida deve ser um padrão fixo a ser copiado pelos demais. As regras que se aplicam a eles obrigatoriamente devem ser aplicadas a todos os que vierem após si.
O “trote espiritual” é tão pernicioso, se configura um abuso ainda mais nocivo que a rejeição aplicada pelo mundo. Isso porque aqueles que abusam fazem em nome de Deus, dizendo que são autoridade de Deus, dizendo que ouviram de Deus e estão seguindo suas orientações. As vítimas desses abusos são taxadas pelos próprios ‘irmãos’ como insubordinadas, rebeldes, ou até hereges. Não são poucas as histórias na igreja evangélica brasileira de pessoas traumatizadas com o convívio com os irmãos e que acabaram se desviando porque não suportaram o bullying espiritual dos religiosos. Casos absurdos de pessoas que foram disciplinadas publicamente na igreja, ou até mesmo expulsas de seu rol de membros, porque usavam sabonete, pintavam os cabelos, estavam bronzeados, ou foram flagrados assistindo TV, ou um culto em outra denominação.
Muitos excluem os outros dos seus grupinhos dizendo ser isso coisa de Deus. Justificam suas ações desamorosas com base em textos bíblicos separados de seu contexto e usam perigosamente o nome de Deus sem imaginar que estão trazendo condenação para si mesmos.
Nos últimos anos temos presenciado uma renovação muito benéfica em alguns setores da igreja brasileira. Muita coisa mudou. Mas sempre questiono: será que ainda estamos suscetíveis aos erros de antes? Talvez não julguemos mais o irmão por causa de uma TV (como no passado), mas será que temos desprezado outros pelo fato de não concordarem conosco em alguns aspectos de nossa fé? Seria esse um pecado menor?
“Será que aquele grupo ‘está na visão’ ou ‘não está na visão’?”
“Afinal, eles fazem parte de nossa cobertura espiritual ou não?”
“Eles são igreja tradicional ou em células?”
“Ih! Fulano deixou o Evangelho do Reino e voltou à denominação!”
“Beltrano não é discipulado (ao invés de discipulável)? Então não é um discípulo!”
"Cicrano não fala nossa linguagem!"
“Aceitem entre vocês quem é fraco na fé sem criticar as opiniões dessa pessoa. Por exemplo, algumas pessoas crêem que podem comer de tudo, mas quem é fraco na fé come somente verduras e legumes. Quem come de tudo não deve desprezar quem não faz isso, e quem só come verduras e legumes não deve condenar quem come de tudo, pois Deus o aceitou. Romanos 14.1-3
Nesse texto vemos dois tipos de pecado. Algumas pessoas vivem sob alguns códigos de conduta e julgam as demais por não estarem sob eles. Elas condenam. Esse é um pecado mais conhecido. Outras pessoas não vêem a necessidade de submissão a essas regras e têm sua consciência limpa pela maneira em que vivem, mas infelizmente tendem a desprezar aqueles que estão sob tais regras. Juízo e desprezo. Pecados praticados por dois tipos distintos, mas que em síntese tem o mesmo peso diante de Deus.
Talvez não julguemos os outros por jogar futebol ou tingir o cabelo, mas será que desprezamos àqueles que acham que isso é pecado? Será que nos consideramos maiores ou com maior esclarecimento espiritual do que aqueles irmãos que não vão ao cinema ou não batem palmas nas reuniões?
Paulo diz: “Aceitem entre vocês quem é fraco na fé sem criticar as opiniões dessa pessoa”. Diz isso porque para ele mais importante que opiniões é aceitação. Mas poderoso que regras de conduta é um abraço fraterno. Mas importante que todos os demais princípios é o amor. Não existe nada antes do amor. Tudo que está fora do amor não tem valor algum.
Quão diferente foi o nosso Senhor Jesus. Quando olhamos para a vida de Jesus ficamos estarrecidos com uma maneira de aceitar o próximo totalmente diferente da nossa. Ao ouvimos as palavras de Jesus deveríamos nos envergonhar de nossa seletividade, espírito farisaico, orgulho espiritual e preconceito religioso.
“O Espírito do Senhor está sobre mim, pelo que me ungiu para evangelizar os pobres; enviou-me para proclamar libertação aos cativos e restauração da vista aos cegos, para pôr em liberdade os oprimidos, e apregoar o ano aceitável do Senhor”. Lucas 4.18-19
“Os sãos não precisam de médico, e sim os doentes. Ide, porém, e aprendei o que significa: Misericórdia quero e não holocaustos; pois não vim chamar justos, e sim pecadores [ao arrependimento]”. Mateus 9.12-13
“Vinde a mim, todos os que estais cansados e sobrecarregados, e eu vos aliviarei”. Mateus 11.28
Jesus chama o fraco e cansado, vai na direção dos pecadores e miseráveis, procura os cativos e encarcerados, os cegos, os doentes. Venham a Ele todos os deprimidos, angustiados, tentados, aflitos, chorões, bêbados, endividados, despreparados, tristes, complicados, medrosos, homossexuais, prostitutas, desesperados, endemoninhados, drogados e quem mais quiser se inscrever nessa lista. Ele garante: vos aliviarei, curarei, libertarei.
A igreja deve ser um lugar de atração para os fracos, sendo tal qual Seu Mestre. Não devemos admitir que haja em nós presunção tal que nos faça não receber qualquer pecador entre nós como se fosse um de nós. O que se observa é que muitos tem dificuldade de chegar perto de um grupo tão “santo” porque não se acham à altura deles, é difícil conversar com eles (pois não conseguem ouvir), é difícil ser fraco perto deles (pois não conseguem suportar), é difícil crescer perto deles (pois não conseguem esperar).
Muitos acabam não se identificando conosco por sermos intolerantes, altivos, inacessíveis, “perfeitos”, impacientes, metódicos, formais, frios, indiferentes, desumanos, desalmados, refletindo um deus que definitivamente não é o nosso Jesus, que se inclinou na direção do homem, se esvaziou e assumiu sua forma, respirou o mesmo ar do leproso e comeu no mesmo prato de rudes pescadores. Como conseqüência, não atraímos ninguém, e justificamos nossos “gatos pingados” de discípulos com a falácia de que estamos priorizando qualidade ou santidade.
No livro de I Samuel 22. 2 vemos que quando Davi se refugiou na caverna de Adulão ao ser perseguido por Saul “juntaram-se a ele todos os homens que se achavam em aperto, e todo homem endividado, e todos os amargurados de espírito, e ele se fez chefe deles; e eram com ele uns quatrocentos homens”. Esse infame bando de desajustados e perdedores encontraram um líder tão aflito como eles, que por fim os transformou em um famoso exercito de valentes que entrou pra história da humanidade.
Essa é a postura que devemos ter: Acolher aqueles que nada são, cujo presente é inexpressivo e o futuro parece incerto, e por meio do amor e do cuidado, os entregarmos nas mãos daquele que é poderoso para fazer muito mais do que tudo o que pedimos ou pensamos. Há lugar para os fracos desse mundo – a casa de Deus.